Tuesday, September 29, 2009

LUTERO, MAQUIAVEL E O SALMÃO



A ferrovia transformou a Revolução Industrial em fato concreto. O que havia sido revolução virou establishment e desencadeou um boom que durou quase 100 anos. A tecnologia da máquina a vapor não chegou ao fim com a ferrovia. Ela levou à turbina a vapor, nos anos de 1880 e 1890, e, nas décadas de 1920 e 1930, às últimas magníficas locomotivas a vapor americanas, tão apreciadas pelas pessoas cujo hobby é estudar trens. Mas a tecnologia centrada na máquina a vapor e nas operações de manufatura deixou de ser central. Em lugar dela, a dinâmica tecnológica transferiu-se para indústrias novas, que surgiram quase imediatamente depois da invenção da ferrovia e não para qualquer coisa relacionada a vapor ou máquinas a vapor. O telégrafo e a fotografia vieram primeiro, na década de 1830, seguidos pouco depois pela óptica e pelos equipamentos agrícolas. A nova e diferente indústria dos fertilizantes, que surgiu no final dos anos de 1830, não demorou a transformar a agricultura. A saúde pública tornou-se uma atividade importante e central. Ela não parou de crescer com o surgimento de quarentenas e vacinas, nem com o fornecimento de água potável e de redes de esgoto que, pela primeira vez na História, fizeram da cidade um hábitat mais saudável do que o campo. Os primeiros anestésicos surgiram na mesma época. Essas tecnologias novas e importantíssimas foram acompanhadas por novas instituições sociais: serviço postal moderno, jornal diário, bancos de investimentos e bancos comerciais, para citar apenas alguns poucos. Nenhuma delas guardava muita relação com a máquina a vapor ou com a tecnologia da Revolução Industrial de modo geral. Foram essas novas indústrias e instituições que, em 1850, já dominavam a paisagem industrial e econômica dos países desenvolvidos. Foi algo muito semelhante ao que acontecera com a revolução da imprensa, a primeira das revoluções tecnológicas que tiveram lugar no mundo moderno. Nos 50 anos que se seguiram a 1455, quando Gutenberg aperfeiçoou a imprensa e os tipos móveis nos quais trabalhara durante muito tempo, ela difundiu-se pela Europa e transformou por completo a economia e a psicologia do continente. Mas os livros impressos nos primeiros 50 anos, os chamados incunábulos, continham em grande parte os mesmos textos que os monges vinham copiando há séculos de maneira tão trabalhosa: obras religiosas e os remanescentes dos escritos da Antiguidade. Naqueles primeiros 50 anos foram publicados cerca de 7.000 títulos, em 35.000 edições. Desses, pelo menos 6.700 eram tradicionais. Em outras palavras, em seus primeiros 50 anos de existência a imprensa tornou disponível, a preços cada vez mais acessíveis, produtos de informação e comunicação tradicionais. Mais tarde, cerca de 60 anos após Gutenberg, surgiu a Bíblia alemã de Lutero. Milhares de cópias dela foram vendidas quase imediatamente a um preço inacreditavelmente baixo. Com a Bíblia de Lutero, a nova tecnologia de reprodução impressa abriu o caminho para uma nova sociedade. Abriu caminho também para o protestantismo, que conquistou metade da Europa e, no prazo de 20 anos, forçou a Igreja Católica a reformar-se. Lutero utilizou a nova mídia da letra impressa de maneira deliberada, com o objetivo de levar a religião de volta ao lugar central da vida individual e da sociedade. Isso desencadeou um século e meio de reformas, revoltas e guerras religiosas. Ao mesmo tempo que Lutero utilizava a imprensa com a intenção declarada de reformar a cristandade, Maquiavel escrevia e publicava O Príncipe (1513), o primeiro livro ocidental em mais de 1000 anos a não conter uma única citação bíblica e nenhuma referência aos escritores da Antiguidade. Em pouquíssimo tempo, O Príncipe tornou-se o outro best-seller do século 16, seu livro mais notório e mais influente. Logo surgiu uma abundância de obras puramente seculares, aquilo a que hoje damos o nome de literatura: romances e livros de ciências, história, política e, pouco depois, economia. Não demorou para que surgisse na Inglaterra a primeira forma de arte puramente secular, o teatro moderno. Também surgiram instituições totalmente novas: a ordem jesuíta, a infantaria espanhola, a primeira marinha moderna e, finalmente, o Estado nacional soberano. Em outras palavras, a revolução da imprensa antecipou a trajetória cumprida pela Revolução Industrial 300 anos mais tarde e que é seguida pela Revolução da Informação nos dias de hoje. Ninguém pode prever, por enquanto, quais serão as novas indústrias e instituições. Nos anos de 1520, ninguém previa o surgimento da literatura secular, muito menos do teatro secular. Na década de 1820, ninguém previa o telégrafo elétrico, a saúde pública ou a fotografia. Tornamos a repetir: a única coisa altamente provável, se não quase certa, é que nos próximos 20 anos vamos assistir ao surgimento de uma série de novas indústrias. Ao mesmo tempo, é quase certo que poucas delas vão sair da tecnologia da informação, do computador, do processamento de dados ou da Internet. Essa previsão é fundamentada pelos precedentes históricos, mas também se aplica às novas indústrias que já estão nascendo em ritmo acelerado. Como já dissemos, a biotecnologia já está entre nós. E a criação comercial de peixes, também. Vinte e cinco anos atrás o salmão era uma iguaria delicada. Nos jantares oferecidos em convenções comerciais, podia-se optar entre frango e carne bovina. Hoje em dia, o salmão é um produto comum e a terceira opção de praxe nos jantares de convenções. A mesma coisa se aplica, com freqüência cada vez maior, às trutas. Dentro em breve, ao que tudo indica, se aplicará a uma série de outros peixes. O linguado, por exemplo, que está para os frutos do mar como a carne de porco está para a carne bovina, está entrando em fase de produção oceânica em massa. Isso certamente levará ao desenvolvimento genético de novos e diferentes peixes, exatamente como a domesticação de ovelhas, vacas e galinhas levou ao desenvolvimento de novas raças desses animais. Mas é provável que cerca de uma dúzia de tecnologias se encontrem na fase em que a biotecnologia estava 25 anos atrás - ou seja, prontas para emergir. Também existe um serviço aguardando o momento de nascer: o dos seguros contra o risco de exposição a moedas estrangeiras. Agora que toda indústria ou negócio integra a economia mundial, esse tipo de seguro é tão necessário quanto os seguros contra riscos físicos (incêndios, inundações) nas etapas iniciais da Revolução Industrial, época em que surgiram os seguros tradicionais. Todos os conhecimentos necessários para criar seguros contra a instabilidade das moedas estrangeiras existem. Só está faltando a instituição propriamente dita.
Nas próximas duas ou três décadas, provavelmente assistiremos a transformações tecnológicas muito maiores que as ocorridas nas décadas que se passaram desde o nascimento do computador e também a transformações ainda maiores na estrutura industrial, na paisagem econômica e, possivelmente, também na social. O gentleman versus o tecnólogo As novas indústrias que surgiram depois da ferrovia deviam pouco, em termos tecnológicos, à máquina a vapor ou à Revolução Industrial de modo geral. Não eram seus filhos de carne, mas, sim, seus filhos em espírito. Tornaram-se possíveis apenas devido à mentalidade criada pela Revolução Industrial e às habilidades por ela desenvolvidas. Era uma mentalidade que aceitava - na verdade, saudava efusivamente - novos produtos e serviços. Também criava os valores sociais que possibilitavam o surgimento das novas indústrias. E, sobretudo, criava a figura do tecnólogo. O sucesso social e financeiro passou longe, por muito tempo, do primeiro tecnólogo americano importante, Eli Whitney, cujo descaroçador de algodão, inventado em 1793, foi tão essencial quanto a máquina a vapor para a consolidação da Revolução Industrial. Uma geração mais tarde, porém, o tecnólogo, ainda autodidata, já se transformara em herói popular americano, figura socialmente aceita e financeiramente recompensada. O primeiro exemplo disso talvez tenha sido Samuel Morse, o inventor do telégrafo. O mais respeitado e célebre foi Thomas Edison. Na Europa, a figura do homem de negócios continuou ainda por muito tempo a ser vista como socialmente inferior, mas, em 1830 ou 1840, o engenheiro formado em universidade já se tornara um profissional respeitado. Na década de 1850, a Inglaterra já perdia sua posição de preeminência e começava a ser superada por uma economia industrial, primeiramente pelos Estados Unidos, depois pela Alemanha. A idéia comumente aceita é que a razão principal disso não foi nem econômica nem tecnológica, mas social. Economicamente falando, e mais ainda em termos financeiros, a Inglaterra continuou a ser a maior potência até a Primeira Guerra Mundial. Em termos de tecnologia, manteve-se na dianteira durante todo o século 19. As tinturas sintéticas para tecidos, primeiros produtos da moderna indústria química, foram lá inventadas, assim como a turbina a vapor. Mas a Inglaterra não aceitou o tecnólogo em termos sociais, nunca o elevou à categoria de gentleman. Os ingleses montaram escolas de engenharia de primeira linha na Índia, mas não em seu próprio país. Nenhum outro país honrou a tal ponto a figura do cientista. De fato, a Inglaterra conservou a liderança no campo da física durante todo o século 19, desde James Clerk Maxwell e Michael Faraday até Ernest Rutherford. Mas o tecnólogo continuou a ser visto como pequeno comerciante. Dickens, por exemplo, manifestou desprezo declarado pelo dono da fundição de ferro oriundo de uma classe social inferior em seu romance Bleak House (Casa Soturna), de 1853. Tampouco foi na Inglaterra que surgiu a figura do capitalista de investimentos, que possui os meios e a mentalidade necessários para financiar o inesperado e o não comprovado. Invenção francesa, primeiro retratada na monumental A Comédia Humana, de Balzac, na década de 1840, o capitalista de investimentos foi institucionalizado nos Estados Unidos por J. P. Morgan e, ao mesmo tempo, na Alemanha e no Japão pelo banco universal. Mas a Inglaterra, apesar de haver criado e desenvolvido o banco comercial (para financiar o comércio), não possuía instituições que financiassem a indústria - até que dois refugiados alemães, S. G. Warburg e Henry Grunfeld, lançaram em Londres um inovador banco empreendedor, pouco antes da Segunda Guerra Mundial.

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